FLEABAG, merecidamente premiada pelo Emmy, como melhor série de comédia em 2019

“Esta é uma história de amor.” É com essas palavras que começa a segunda temporada de Fleabag. No entanto, apesar de a personagem principal que dá nome à série, interpretada por Phoebe Waller-Bridge, quebrar a quarta-parede, olhar para a câmera e nos dar o que poderia ser considerado um inofensivo spoiler a respeito do conteúdo de sua história, o que vemos são seis episódios de relacionamentos conturbados, sofrimento e a vida sendo injusta. Onde está o amor em tudo isso, afinal?

Aviso: este texto contém spoilers!

Foi essa a pergunta que ficou martelando na minha cabeça quando desliguei a televisão após ter assistido todos os episódios de uma só vez. Se aquela é uma história de amor, por que a sensação que eu tinha era de algo inacabado e longe de romântico? A dúvida me atormentou tanto que tive de rever a série, do início ao fim. Não é um trabalho árduo, já que as duas temporadas contam com somente doze episódios ao todo, cada um com menos de meia hora. Porém, o trabalho de Phoebe Waller-Bridge que, além de protagonizar também é responsável pela criação da série, é inteligente e sutil o suficiente para não subestimar o público com receitas clichês de amor — apesar de haver um grande clichê na história: o Padre Gato (Andrew Scott).

Uma das coisas de que mais gosto em Fleabag é que a maioria de seus personagens não possuem nomes. A própria protagonista atende pelo apelido que dá título à série, e que literalmente significa “saco de pulgas”. O Padre Gato (tradução livre de Hot Priest, no original) também só atende por Padre. O pai (Bill Paterson) e a madrasta (Olivia Colman) de Fleabag tampouco possuem nomes. Com isso, já temos a sacada genial a respeito do que se trata essa história. Assim como acontece em fábulas, nas quais animais representam arquétipos do ser humano e atendem por Pato, Rã, Lebre, etc., a série quase não utiliza nomes porque seus personagens são arquétipos de coisas com as quais Fleabag precisa lidar durante sua trajetória. O pai representa a rejeição que ela sente vinda da família; a madrasta é o sentimento de que as pessoas são facilmente substituíveis; e o Padre Gato representa a esperança de redenção.

Fleabag

A princípio, pensei que ele representasse o amor, pois o vínculo de ambos vai crescendo durante a temporada até se transformar em um relacionamento amoroso de fato. As conversas entre as missas, as bebedeiras em conjunto, a cena do confessionário, tudo nos leva a crer que Fleabag finalmente encontrou alguém com quem se importa de verdade, o suficiente para tentar construir um relacionamento afetivo saudável. No entanto, como sua psicóloga (Fiona Shaw) bem pontua: “Você quer foder com o padre ou quer foder com Deus?”. É uma pergunta para a qual a nossa protagonista não tem resposta.

Apesar de ser ateísta, ao longo da temporada ela parece começar a desenvolver a fé em algo, a princípio por causa do interesse amoroso no Padre, mas depois genuinamente, talvez pelos pequenos sinais da existência de algo maior que a série comicamente coloca em momentos de negação da fé, como quando um quadro cai, fazendo um estardalhaço, ao que o Padre Gato aponta que adora quando “Ele” faz isso, ou na própria cena altamente sensual do confessionário, quando a grande porta da igreja bate no momento em que eles estão prestes a transar. Não que ela precise acreditar em Deus ou que a série seja a busca da personagem por uma fé — longe disso. Mas Fleabag precisa acreditar em si própria. Por meio de flashbacks que nos fazem compreender a dor dela e a causa de todo o ressentimento e autossabotagem, descobrimos que ela está em luto, tanto pela mãe quanto pela melhor amiga, Boo (Jenny Rainsford), por cuja morte ainda se culpa. Diante dessas circunstâncias, é fácil entender que “foder com Deus” seria mais uma forma de se punir por coisas que ela não poderia controlar. E, para isso, é preciso acreditar em algo. Nem que seja na possibilidade de uma redenção para a qual ela não se sente merecedora.

“Eu só quero alguém que me diga como viver a minha vida, Padre, porque até agora eu acho que fiz tudo errado, e eu sei por que as pessoas querem alguém como você em suas vidas, porque você apenas diz para elas como fazer. Você simplesmente diz para elas o que fazer e o que elas vão conseguir ao final das contas, e mesmo que eu não acredite nas suas bobagens, e eu sei cientificamente que nada do que eu faço faz a diferença no fim das contas, eu ainda estou com medo. Por que eu ainda estou com medo?”

Se sentindo culpada pela morte da amiga e desamparada após a morte da mãe, Fleabag recebe a depressão de braços abertos e tenta encontrar maneiras de se punir, tornando sua vida sem sentido e estragando seus relacionamentos. Através de toda a primeira temporada podemos vê-la desprezando o namorado (que, de fato, não era grande coisa, mas estava lá) até o ponto de assistir a tanta pørnografia que o cara vai embora definitivamente após muitas idas e vindas. A vemos pulando de cara em cara, com relacionamentos rápidos e somente sexuais que não significam nada — pelo menos não até o momento da rejeição, que sempre é um momento de dor disfarçada pela quebra da quarta-parede, com a história inventada de que tudo que acontece na vida dela é parte de um show e que ela está interpretando algo para uma audiência. Uma das formas de se fugir da dor é se dissociando de si mesma, se enxergando como uma personagem e se punindo, agindo de forma descuidada apenas para gerar boas histórias. Fleabag gera boas histórias com certeza, mas isso não lhe faz bem algum.

O uso do sexo como forma de se sentir desejada e preencher o vazio que a consumia tanto pelo desprezo da família quanto pela culpa pela morte da amiga é compulsório, mas ela simplesmente não sabe como parar. Já que a amiga morreu em função de uma traição do namorado com a própria Fleabag, ela usa o sexo para se punir. A primeira temporada é angustiante, apesar de cômica, mas a comicidade também faz parte da depressão, a necessidade de colocar uma máscara debochada e fingir que está tudo bem. O problema não é o sexo casual, mas a culpa que a leva até ele. Talvez Phoebe Waller-Bridge tenha escolhido o sexo como ponto de escape para ignorar a depressão da personagem principal porque é muito comum vermos isso acontecer com homens em séries televisivas, mas não com mulheres. Contudo, fazer sexo casual para ignorar problemas é normal a seres humanos de todos os gêneros. Sexo é um dos nossos instintos mais básicos e é ridículo pensar o quão romântico ele é tratado exclusivamente sob a perspectiva feminina. Transar por transar é normal, e esse está longe de ser o problema de Fleabag. O problema é que ela se fere no processo, se corroendo pela culpa. Como o pai dela disse durante uma conversa particularmente tocante, “Você acha tudo tão doloroso porque sabe amar melhor do que todos nós”. Ela possui sentimentos, muitos, mas os engole e mascara sua dor com um cinismo debochado que só faz mal a ela, tudo porque não se sente digna de ser feliz.

Quando Fleabag conhece o Padre Gato, durante o jantar de noivado do pai dela e da madrasta, pouco mais de um ano havia se passado entre a primeira e a segunda temporada. Nesse intervalo de tempo, nos é brevemente mostrado que ela conseguiu controlar seu impulso autodestrutivo sexual, começou a se exercitar e a levar a sério seu café, administrando-o tão bem a ponto de o local ficar lotado em dias de semana. Apesar de seus problemas, ela está estável, se mantendo firme, e estabeleceu uma distância segura entre ela e a família, a quem não via há um bom tempo.

Fleabag

É importante ressaltar que Fleabag não simplesmente conheceu o Padre Gato e ficou livre da depressão e pronta para amar. Ela conheceu muitos homens e nenhum a curou. Ainda que o Padre esteja fora do estereótipo, já que bebe o tempo todo e fala um palavrão a cada dez palavras, além de realmente ser atencioso e se preocupar com ela, a resposta da depressão não está em um homem. A série mostra isso, mas tendemos a romantizar qualquer narrativa, o que é normal, já que fomos criadas dessa maneira tanto pela sociedade em geral, com seus estereótipos de feminilidade e salvação pelo romance, quanto por produções artísticas, como o cinema, que por um bom tempo nos saturou com comédias românticas em que a mocinha encontra o sentido da vida após conhecer um certo cara bonitão e diferente. Fleabag não é esse tipo de história. E o Padre Gato não é sua história de amor.

Sendo Fleabag uma personagem sem nome, ela também representa um arquétipo social, e esse é o arquétipo da mulher moderna do século XXI que se culpa por tudo e tenta se autossabotar como uma espécie de mecanismo de destruição. A forma como despreza as pessoas, usa homens para se satisfazer sexualmente, deixando-os até mesmo fazer coisas que ela nem queria só para ter um momento de prazer físico com alguém é um dos retratos mais reais de como lidamos com a depressão hoje em dia. Podemos buscar sentido no sexo, no sono, em drogas, em programas de televisão ou mesmo em pessoas, não as enxergando mais como alguém real, mas sim como uma âncora idealizada que irá nos salvar. Fleabag não possui uma âncora e se sente cada vez pior enquanto finge desprezar as pessoas quando na verdade gostaria apenas do amor e da aceitação delas. No entanto, ela só reconhece isso quando, após uma conversa franca sobre o envelhecimento feminino com uma executiva (Kristin Scott Thomas) que trabalha com sua irmã, ela diz que não tem nada para ela naquela festa pois as pessoas são idiotas, ao que a mulher mais velha lhe responde que “querida, tudo o que temos são as pessoas”. É nesse momento que algo começa a ser remexido em Fleabag, algo que ainda não havíamos visto de fato, pois estava escondido sob camadas e camadas de cinismo. Ela, como qualquer pessoa, quer ser amada, mas não gosta de si mesma o suficiente para se permitir isso.

Apesar de haver amor entre Fleabag e o Padre Gato, a história de amor não é sobre eles como um casal. O Padre, sendo o arquétipo da esperança e redenção, auxilia Fleabag por ter sido o primeiro a enxergá-la de fato, por inteiro, para além de seu cinismo e dos momentos em que desaparecia e conversava com a câmera. Por sua sensibilidade e verdade, por ele mostrar que não é uma pessoa perfeita e está longe de ser um homem de Deus incorruptível como o cargo sugere, por ser a primeira pessoa na série, além da protagonista, que expõe seus defeitos sem grandes vergonhas, ela consegue se permitir ser amada. Porque, a partir desse ponto, ele deixa de ser um estereótipo e passa a ser uma pessoa. Isso seria ainda mais visível se ele ganhasse um nome próprio, o que não acontece, mas o que acontece é um diálogo, pouco antes da cena do confessionário, em que ele salienta descaradamente para ela que ela o chama de Padre como isso não lhe causasse tesão. A recusa em usar um nome próprio é escrachada ali porque ele a enxerga verdadeiramente. E é nesse momento que ela se abre para o amor. Contudo, se abrir para o amor não significa ter um final feliz de novela, com casamento, filhos e uma vida tradicional. A vida de comercial de margarina já deixou de existir há algumas décadas — até porque só existia na aparência — e esse certamente não é o destino da nossa protagonista.

A temporada inteira está repleta de pessoas aceitando o amor. Não há nenhum personagem que não seja problemático ali. O pai está se casando pela segunda vez com a madrinha de suas filhas. Claire (Sian Clifford), a irmã de Fleabag e uma das únicas personagens que possuem nome próprio, está presa em um relacionamento com Martin (Brett Gelman), um homem nojento, misógino e alcoólatra. O Padre não consegue decidir se dá vazão a seus sentimentos e instintos sexuais ou se continua celibatário, obedecendo às ordens da igreja. Entre Fleabag e Deus, quem ganha?

O pai de Fleabag seguiu em frente após a morte da esposa e encontrou novamente o amor. A irmã dela tomou coragem e saiu de um relacionamento péssimo para ir atrás de um homem finlandês que não saía da sua cabeça. Mas Fleabag, apesar de seu desprendimento para se envolver fisicamente com pessoas, não conseguia abrir seu coração. E a verdadeira história de amor da temporada é esta: aprender a amar e se permitir ser amado, apesar de todos os problemas e defeitos e erros do passado.

Estamos todos fodidos. E tudo o que temos são as pessoas. O amor é horrível. A vida é injusta. Essas são algumas das lições que Fleabag, uma das melhores séries da atualidade, traz. Mas, apesar de todo o discurso maravilhosamente real que o Padre Gato realiza na cerimônia de casamento do pai e da madrasta, falando sobre como o amor é horrível e, por isso mesmo, é para os corajosos, eles não ficam juntos. É Deus quem ganha o coração do Padre, embora ele admita que ama Fleabag, em uma cena particularmente sensível e tocante, quando pela primeira vez ela se expõe e declara seu amor por ele.

Essa abertura emocional é a história de amor. Aceitar o amor, amar a si mesma, apesar de tudo ou por causa de tudo. Essa é a história de amor do século XXI: não mais a respeito de casais, já que aceitamos que relacionamentos possuem um tempo e que tudo bem quando não dá certo. Nem sempre uma pessoa a quem amamos permanece na nossa vida, mas as coisas que passamos com ela permanecem e nos transformam. A verdadeira história de amor de Fleabag é sua jornada de luto e depressão até o momento em que ela aceita que está tudo bem sentir tristeza e não saber ao certo seu lugar no mundo, que ela merece ser amada assim como qualquer outra pessoa. É nesse ponto que ela vai embora sozinha daquele ponto de ônibus e impede a câmera de segui-la, finalizando assim um ciclo de interpretação, já que agora ela não precisa mais fingir ser uma personagem. Ela é só uma pessoa, uma mulher normal com dores e depressão, mas que não é menos digna de amor por isso. Fleabag está de coração partido, mas pronta para um relacionamento e curada de suas feridas do luto, não precisando mais de um espectador para validar sua existência.

Fleabag recebeu 8 indicações ao Emmy Awards 2019 nas categorias de Melhor Série de Comédia, Melhor Atriz em Série de Comédia (Phoebe Waller-Bridge), Melhor Atriz Coadjuvante em Série de Comédia (Olivia Colman e Sian Clifford), Melhor Atriz Convidada em Série de Comédia (Kristin Scott-Thomas e Fiona Shaw), Melhor Direção em Série de Comédia e Melhor Roteiro em Série de Comédia. 

Resenha originalmente publicada pelo site http://v a l k i r i a s.c o m.b r/

About Dina Barile

Recebi o título de Doutora em Viajologia, depois de viajar por 153 países e pisar em todos os continentes. Recebi um troféu do Rank Brasil, pois sou a primeira e única mulher brasileira a ter estado na ESTRATOSFERA. Experimentei a Culinária de todos os países por onde passei. Expert nos temas Turismo, Gastronomia e Beleza, convido todos os leitores para um Passeio Turístico e Gastronômico por todos os Continentes.

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